Entrevista: Marcos Alves da Silva fala sobre uniões simultâneas

23/05/2014   |   Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeitou na última terça-feira (20), um pedido de reconhecimento de união estável por falta de fidelidade. Por unanimidade, os ministros entenderam que a fidelidade, mesmo não sendo exigida por lei para caracterizar a união estável, é dever de respeito e lealdade entre os companheiros.

No caso, uma mulher recorreu ao STJ após ter o pedido de reconhecimento de união estável negado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). No recurso, a autora sustentou que manteve convivência pública, duradoura e contínua com o finado de julho de 2007 até o seu falecimento, em 30 de novembro de 2008, e que o dever de fidelidade não estaria incluído entre os requisitos necessários à configuração da união estável. A outra companheira contestou a ação, alegando ilegitimidade ativa da autora, que seria apenas uma possível amante do falecido, com quem ela viveu em união estável desde o ano 2000 até o seu falecimento.

Para a ministra relatora Nancy Andrighi, uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade – que integra o conceito de lealdade e respeito mútuo – para inserir no âmbito do direito de família relações afetivas paralelas. Os dois relacionamentos simultâneos foram efetivamente demonstrados nos autos.

Nancy Andrighi admitiu que a jurisprudência do STJ diverge ao tratar do tema e alertou que, ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, atento às peculiaridades de cada caso, “decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade”.

A ministra concluiu o voto ressaltando que seu entendimento não significa dizer que a relação mantida entre a recorrente e o falecido mereça ficar sem qualquer amparo jurídico: “Ainda que ela não tenha logrado êxito em demonstrar, nos termos da legislação vigente, a existência da união estável, poderá pleitear em processo próprio o reconhecimento de uma eventual sociedade de fato.”

O voto da relatora foi acompanhado de forma unânime na Turma e reforçado por um comentário do ministro Sidnei Beneti. Para ele, divergir da relatora neste caso seria legalizar a “poligamia estável”.

O IBDFAM conversou com o advogado Marcos Alves da Silva, membro do Instituto e autor do livro “Monogamia: sua superação como princípio estruturante do Direito de Família” (Juruá, 2013) em que sustenta que a monogamia como regra não subsiste se passada pelo crivo e pelo banco de provas dos princípios constitucionais. Para ele, cada caso tem suas peculiaridades, mas a decisão pode ser comentada de acordo com a teoria.

Como o senhor avalia a decisão do STJ?
Não tenho como avaliar a decisão do STJ, pois, não tive acesso ao acórdão, ainda pendente de publicação. Todavia, é certo que a matéria posta em julgamento pode ser avaliada em tese. Os casos concretos têm nuances que os tornam peculiares. A dinâmica da vida em família não admite respostas pré-formatadas ajustáveis a todos os fatos. A partir do noticiado pelos meios de comunicação a respeito deste julgado, entendo que a posição do Tribunal de Justiça de Minas Gerais parece mais adequada.

Segundo divulgado, o TJ-MG teria negado o pedido de reconhecimento da segunda união estável por entender que o relacionamento da autora da ação com o finado teria sido apenas um namoro, sem objetivo de constituição de família. Configurado apenas um mero relacionamento amoroso com terceira pessoa, os elementos caracterizadores da união estável não estariam presentes. Logo, não haveria fundamento jurídico a dar amparo à pretensão da autora.

O Superior Tribunal de Justiça seguiu por trilha completamente diversa para fundamentar sua decisão. Tomou como critério o dever de fidelidade e o suposto princípio da monogamia para afastar a possibilidade de reconhecimento de uniões estáveis simultâneas. Sem tomar em conta o caso concreto apreciado pelo STJ, questiono a tese sustentada. Nela subsiste um grande equívoco. Consideradas as múltiplas formas de estruturação que as famílias contemporâneas adotam e as variadas e não uniformes funções que cumprem, não é possível a todas elas, genericamente, aplicar o antigo modelo fundado no casamento.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu o princípio da pluralidade das entidades familiares. Não temos, como nunca tivemos, uma única família. Antes da norma constitucional atingir sua potencialidade, ainda nos encontramos em uma fase que toma o casamento como paradigma e referência para pensar todos as demais formas de constituição de arranjos familiares. A união estável, por exemplo, necessita de uma construção jurídica autóctone. Lamentavelmente, o codificador e, também, ainda boa parte dos juristas, juízes, promotores e advogados não atinaram para o fato de que tomar o casamento como referência para pensar a união estável aniquila este segundo instituto. O STJ, pelo noticiado a respeito deste julgado, chega ao extremo. Vai buscar o dever de fidelidade do casamento, para aplicá-lo ao caso que, em tese, poderia configurar união estável.

Este equívoco será desnudado em breve. Não há como o STJ persistir por muito tempo sustentando tese absolutamente incompatível com o momento histórico vivido pela sociedade e, particularmente, pelas famílias brasileiras. Tomar a monogamia como princípio jurídico inarredável implica, certamente, condenar um número significativo de famílias e especialmente de mulheres à condição de invisibilidade jurídica. Num Estado Democrático de Direito, que tem entre seus princípios basilares a laicidade do Estado, a liberdade, o direito à diversidade, é improvável que as formas de conjugalidade sigam sendo ditadas por um único modelo sacado do Direito Canônico e adaptado aos moldes do interesse da burguesia liberal, nas codificações civis, com o fito de proteger, conservar e transferir patrimônio, isto é, a família dita legítima. Vivemos em um país de diversidade cultural e social imensa. Ainda que haja uma maioria que, por suas convicções religiosas ou morais, adote a monogamia como princípio, parece evidente que esta não é uma questão de Estado.

O antigo modelo, todavia, está tão impregnado no senso comum dos juristas que nem se apercebem da verdadeira esquizofrenia de que estão a padecer as decisões de nossos tribunais. De um lado, temos avanços como o sinalizado pelo julgado do Supremo Tribunal Federal, na ADI 4277 e na ADPF 132, nos casos das famílias homoafetivas, de outro, permanece, subjacente, o ranço do modelo único de família matrimonializada, hierárquica, patriarcal, heterossexual, transpessoal e monogâmica em várias decisões dos tribunais superiores.
Como o senhor interpreta o entendimento do ministro Sidnei Beneti. Para ele, divergir da relatora neste caso seria legalizar a “poligamia estável”?
Note que esse tipo de posicionamento, que não chega a ser um argumento, tem caráter retórico. Parte do pressuposto de que existiria, no Brasil, e estaria em plena vigência norma jurídica que impõe a monogamia como dever implícito para a conjugalidade.

É de se admitir que um significativo número de casamentos e de uniões estáveis se sustenta com base num acordo tácito ou expresso de fidelidade conjugal. Por fidelidade conjugal se entenda exclusividade nas relações sexuais e, também, nas manifestações de afeto de natureza íntima ou erótica. Boa parte das relações de conjugalidade (uso a palavra em sentido amplo e não apenas referida ao casamento) se mantém numa repactuação constante da confiança e da comunhão de interesses e afinidades. Sobre esse tênue e frágil fio é que se equilibraram e podem perdurar as relações amorosas. Nada mais. Não existe dever jurídico de fidelidade. O que consta como dever de fidelidade, no Código Civil, está reduzido a um conselho inoportuno dado pelo Estado que não tem legitimidade alguma de imiscuir-se na intimidade das relações conjugais. Com a Emenda Constitucional nº 66 foi posta uma pá de cal sobre a questão da culpa, na dissolução da sociedade conjugal. Logo, arrefeceu a sanção jurídica para o caso de descumprimento do dever de fidelidade, visto ser o divórcio direito potestativo, que pode ser exercido independentemente da obrigação de explicitação de motivos. Os ditos deveres conjugais demandam nova reflexão.

Por outro lado, se um casal, no foro íntimo de suas relações, mantiver o que foi chamado, décadas atrás, de “casamento aberto”, no qual a exclusividade das relações sexuais entre os cônjuges não se apresenta como dever, que poder tem o Estado de ditar o dever de fidelidade? Se internamente outra for a deliberação do casal, o suposto dever jurídico é automaticamente apagado. Em última análise a fidelidade é um direito dispositivo, pode ser um dever decorrente da liberdade dos cônjuges ou companheiros, mas não um dever imposto pelo Estado.

O mesmo se pode dizer em relação ao que vem sendo chamado de “poliamor”. Pode o Estado dizer que não existe uma união estável formada, por exemplo, entre uma mulher e dois homens, que, de fato, e até por meio de um pacto formalmente reduzido a escritura pública, estabelecem entre si união estável com o fim de constituír família?? Se for admissível que o Estado negue a liberdade das pessoas se organizarem, em família da forma que lhes aprouver, caracterizada ficará grave ofensa aos princípios constitucionais. Se tal vedação for absurdamente admitida, na quadra histórica que vivemos, então, de fato, terá razão o Ministro Sidnei Beneti com sua ironia retórica. Não se trata de legalizar a poligamia. Situações de grave injustiça estão submersas e obscurecidas no discurso, que às vezes até bem intencionado, apregoa a monogamia como salvaguarda da sagrada família.
A ministra Nancy Andrighi admitiu que a jurisprudência do STJ é divergente sobre o tema Uniões Paralelas, e alertou que, ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, …….atento às peculiaridades de cada caso. Na opinião do senhor, o Direito de Família deve romper com o princípio social da monogamia para proteger essas famílias que se formam paralelamente a outra?
Não entendo que o Direito de Família deva romper o princípio social da monogamia. Estamos em uma sociedade livre. Defendo que as pessoas, os credos religiosos, os diversos grupos e entidades que podem se formar tenham suas convicções, as defendam e inclusive exijam determinado comportamento de seus adeptos ou associados. Logo, não vejo problema algum no que se chamou “princípio social da monogamia”. Todavia, entendo que a monogamia não subsista, hoje, como princípio jurídico, como norma e critério cogentes, no ordenamento jurídico brasileiro, reconfigurado a partir da Constituição de 1988.   Feita esta ressalva, é necessário dizer que a monogamia, tomada como princípio jurídico, obsta a realização da justiça, condena à invisibilidade jurídica especialmente a mulher secularmente marginalizada; desqualifica famílias, fazendo-as famílias de segunda categoria; nega famílias que, socialmente, são reconhecidas e tratadas como tais.   Note-se que, historicamente, no Brasil, ao se falar das famílias paralelas ou simultâneas, a referência pejorativa foi sempre endereçada à mulher: As Ordenações Filipinas a tratavam como teuda e manteuda (isto é, aquela que se tem e se mantinha). O verbo ter é conotativo do sentido de propriedade por parte do homem. Mais tarde, o designativo prevalecente para essa mulher foi e continua sendo concubina. A história do concubinato no Brasil não pode ser desprezada em prestígio à “família legítima” formada pelo casamento, sob pena de seguirmos pela mesma senda histórica de discriminação da mulher pobre, socialmente “desqualificada” e marginalizada do ponto de vista racial.

Há uma dívida histórica imensa, desde o Brasil Colônia, em relação a essa mulher, índia, negra, pobre, colocada à margem da tutela jurisdicional do Estado, negada em sua subjetivada, feita invisível por um sistema jurídico hipócrita que, a título de prestigiar a família sacralizada pelo casamento, hipostasia suposto princípio da monogamia, condenando à inexistência jurídica pessoas, que são, desta forma, afrontadas no que há de mais nuclear em sua dignidade.
Na opinião do senhor, casos como este devem ser analisados com base na doutrina, na jurisprudência, ou já deveriam haver normas que regulamentassem os direitos das famílias paralelas?
Sinceramente, não acredito em atos redentores do legislativo. Não é de se negar avanços sociais que se viabilizaram pela mão do legislador. Há no ordenamento jurídico brasileiro base de natureza constitucional para uma releitura necessária e impostergável de todo o Direito Privado e, mais especificamente, do Direito das Famílias. Este processo está em curso. A contribuição do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) é inegável. Tem desempenhado o papel de principal protagonista no cenário jurídico nacional, colocando em debate os temas mais candentes e relevantes do Direito das Famílias. O tema das famílias paralelas tem sido reiteradamente debatido nos Congressos e publicações do IBDFAM. Vejo o Direito — para usar a metáfora de Ihering — como uma luta, na arena democrática das ideias. Neste ponto, o professor Luiz Edson Fachin traz contributo inestimável. Ele elaborou o conceito da dimensão prospectiva da constitucionalização do Direito Civil, para demonstrar que tal constitucionalização não é um evento estático, como se tivesse ocorrido com a promulgação da Constituição Federal, em 1988. Ela se faz Constituição pela força jurígena dos fatos que impulsionam o jurista a uma sempre renovada interpretação/aplicação da própria norma, na dinâmica e complexidade da vida contemporânea. Assim, esperar solução para esse embate pela simples mágica da edição de leis que regulem, por exemplo, as uniões estáveis simultâneas, é de um simplismo e de uma ingenuidade jurídica incompatíveis com a problemática em questão.

Sustentei em livro sobre o tema (Monogamia: sua superação como princípio estruturante do Direito de Família – Editora Juruá) que a monogamia como regra não subsiste se passada pelo crivo e pelo banco de provas dos princípios constitucionais. Por essa razão, não acho que para se avançar em relação ao tratamento jurídico dado às famílias simultâneas seja necessária a edição de novas leis.

Marcos Alves da Silva | Advogados Associados 

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